22 janeiro 2007

O buraco do metrô não é fatalidade

REVISTA CAROS AMIGOS
A mulher, velhinha, sai aturdida sob o foco dos jornalistas. Nas mãos, leva um saco plástico com algumas roupas e a imagem de Nossa Senhora. Quem mais lhe valeria, senão ela, a mãe de Deus? As lágrimas correm soltas e o ar é de estupefação, de abandono. A casa que lhe serviu de lar por mais de sessenta anos está sendo arrancada dela. Precisa sair, deixando toda a sua vida, suas memórias, seus objetos pessoais. A mulher, aos prantos, é mais uma vítima do buraco do metrô. Esta, pelo menos, ainda conserva a vida. Menos sorte tiveram os que estavam na van ou no caminhão. E, enquanto os dramas humanos desfilam na telinha, os repórteres e autoridades falam de “fatalidade”.
Ora, o buraco do metrô de São Paulo, que ceifou vidas e desalojou dezenas de famílias, não é uma fatalidade. É uma ação concreta, planejada por homens e mulheres. É uma obra que recebe as bênçãos de todos os que vivem na grande cidade, porque precisam dela. É fruto do desejo de progresso. Ela encurta distâncias, ajuda as pessoas a chegarem mais rápido no seu trabalho, desafoga as ruas já tão congestionadas de carros.
A cidade de concreto, apinhada de gente, colméia humana, precisa crescer para baixo. Precisa abrir túneis, crateras, linhas, estradas subterrâneas, para que as gentes possam escoar. A sanha do crescimento, o domínio da natureza, a arrogância da raça que tudo pensa dominar. Então, um cálculo mal feito, um prego mal pregado, uma parede mal concretada e a Pachamama se revira, viva. É. Porque a terra é viva. Ela é parte de nós. Tem desejos, vontades, boceja, espreguiça, se remexe, expele, sanfoneia.
A terra, viva, sente cada ação do humano sobre ela. Quando fazem testes nucleares ela se fende, o mar corcoveia nos tsunâmis e o solo treme. Quando os gases nocivos são demasiados, ela tosse, formando furacões, tormentas, vendavais. Quando há o consumo exagerado da energia fóssil, ela perde a capa protetora e as camadas de gelo derretem, provocando inundações. Todo movimento da Pachamama nunca é fatalidade. É sempre um re-agir. Ela geme, se retorce e anuncia aos que nela vivem que há que entender, de uma vez por todas: a vida de todas as espécies está ligada por um fio. Cada ação tem uma reação. Tudo está em conexão.
Este não é um discurso de eco-chato ou de militante da nova era. É só a leitura nua e crua da realidade. A velhinha que sai da casa onde viveu a vida toda talvez agora possa compreender o que significa o progresso predador. É possível que ela nunca tenha pensado sobre isso. E, no fim, é preciso que a terra se parta engolindo as gentes para que se possa intuir que algo vai mal na maior cidade do Brasil.
Não se trata, é claro, de fazer culpado quem é vítima. Os milhões de seres que acorrem às grandes cidades em busca de vida melhor nada mais são do que o resultado de um modelo de desenvolvimento que está pouco se lixando para a vida da maioria. As pessoas querem ser felizes, se movem em direção disso, por isso estão sempre migrando. Porque nos sertões, nos cantões do mundo, nada há além de fome e opressão. E, assim, vão para os grandes centros onde tampouco encontram o que buscam. Então, na selva de pedra, vivem outros dramas: enchentes, desmoronamentos, deslizamentos, balas perdidas. Fatalidades?
Agora, as empreiteiras que fazem o metrô, sem qualquer fiscalização do Estado, inventaram um novo jeito de comer gente. Já não basta a exploração dos trabalhadores. Assim, impunes, abrem buracos no chão, sugando o dinheiro de todos em nome do progresso. E, ao cuspirem corpos mortos, ninguém se responsabiliza. O governo, tal qual Pilatos lava as mãos. Não tem culpa. A direção do metrô não tem culpa. As empresas não têm culpa. Certamente encontrarão algum engenheiro jovem ou um peão, a quem transformarão no cordeiro. “Foi ele!” E tudo acabará bem. O buraco será fechado, as obras do metrô continuarão. Poucos meses depois, as gentes estarão correndo nos trens subterrâneos na pressa do capital. Ninguém mais se lembrará dos mortos ou dos que tiveram de deixar suas casas. Até que, de novo, a terra, viva, grite de dor. Então os repórteres voltarão a falar de “fatalidades”.
Quando os humanos aprenderão? São apenas uma espécie, entre tantas, nesta bola azul. Quando perderão a arrogância? Quando voltarão a reverenciar a Pachamama, cuidando dela? Quando perceberão que o modelo de desenvolvimento proposto pelo capitalismo é uma sentença de morte pairando sobre a cabeça de todos? Chegará esse dia? Chegará?
Elaine Tavares é jornalista.