07 novembro 2008

O DISCURSO RACISTA NA TV



O DISCURSO RACISTA NA TV:
UMA ANÁLISE DA PROPAGANDA DA CERVEJA SOL
Lise Mary Arruda Dourado
Especialista em Metodologia do Ensino Superior
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Nós não queremos papéis de negros, queremos
papéis de brasileiros empregados, empresários, dentistas,
médicos, advogados. (ARAÚJO apud RAMOS, 2002)
1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo investigar as condições de produção do
discurso veiculado por uma propaganda da cerveja Sol e de que modo busca
contribuir para a manutenção de uma concepção étnica que insiste em manter o
negro em uma posição marginal. Visto que a propaganda constitui importante
produto cultural, tanto pela regularidade com que é exibida nos intervalos entre
programações, quanto por mobilizar determinados universos de referência e, com
isso, impor modelos coletivos de representações e comportamento. O corpus do
trabalho constitui-se na propaganda da cerveja Sol, veiculada em rede nacional, no
verão de 2007. A análise, que busca desvelar a maneira como a memória discursiva
do sujeito-telespectador brasileiro é acionada à produção de sentidos, é realizada à
luz dos dispositivos da Análise do Discurso de Linha Francesa (PÊCHEUX, 1990;
ORLANDI, 2003) além de utilizar alguns verbetes de Charaudeau e Maingueneau
(2004). As reflexões acerca dessa análise contribuem para descortinar o véu
ideológico do branqueamento presente na propaganda em questão, cujo título é
Bronzeador.
Palavras-chave: Condições de produção; Discurso racista; Propaganda televisiva.
INTRODUÇÃO
O universo midiático exerce na pós-modernidade um papel fundamental
na circulação de sentidos, cujos valores simbólicos influenciam cultural e
socialmente na constituição dos sujeitos. Para esse fim, a televisão, considerada um
dos veículos de comunicação mais populares, lança mão de diversos mecanismos e
estratégias que envolvem aspectos verbais, visuais e sonoros. O poder, que lhe foi
delegado por tais aspectos, gerou uma ambivalência de opiniões a seu respeito:
[...] ora afirmam ser a televisão um instrumento de estímulo e
incentivo à produção da violência, que informa pouco e mal, ‘destrói
mais saber e mais entender do que transmite’, ‘está mudando a
natureza do ser humano’ (SARTORI, 2001, p. 8-9); que emburrece,
aliena, hipnotiza, vicia e transmite ao vivo imagens de guerra como
1
Joel Zito Araújo é Doutor em Comunicação, professor visitante da Universidade do Texas, cineasta e diretor.
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‘espetáculo excitante’ (KEHL, 1991, p. 60); que os produtos
disponibilizados pelas agências de notícias são vinculados, ‘quase
sempre, a interesses políticos e econômicos, divulgando, ignorando
ou distorcendo o que lhes interessa ou parece conveniente’
(FREIRE, 1999, p. 19). Ora apontam-na como dispositivo audiovisual
através do qual uma civilização pode exprimir a seus
contemporâneos os seus anseios e dúvidas, as suas crenças e
descrenças, as suas inquietações, as suas descobertas e os vôos de
imaginação (MACHADO, 2000, p. 11). (TASSO apud NAVARRO,
2006, p.131)
Entre as tipologias do gênero midiático televisivo, a propaganda constitui
importante produto cultural, tanto por nos emocionar, chocar, divertir ou atrair,
quanto pela regularidade com que é exibida nos intervalos entre programações, o
que aumenta o seu poder de persuasão. Há muito, a publicidade não se limita à
divulgação dos aspectos funcionais e dos benefícios do produto ou serviço
anunciado. Ao reconstituir cenas cotidianas da vida e mobilizar determinados
universos de referência, em detrimento de outros, a propaganda também propõe
modelos coletivos de comportamento - podendo cristalizar estereótipos – e, dessa
forma, assume uma poderosa influência cultural. Bem ou mal, um “papel social” é
cumprido, pois a propaganda espelha e serve de referência para a construção de
identidades:
[...] a televisão se inscreve numa seqüência temporal breve, que se
impõe à instância que olha, orientando-a em seu olhar sobre os
dramas do mundo. Assim, pode-se dizer que a televisão cumpre um
papel social e psíquico de reconhecimento de si através de um
mundo que se fez visível
2
(CHARAUDEAU, 2006. p. 112, 112).
Lançar-se-á um olhar étnico sobre a propaganda da cerveja Sol, a fim de
investigar se, na contribuição desta publicidade para a construção da identidade
negra, há indícios de um discurso racista. Para tanto, prioriza-se a discussão sobre
as condições de produção, lançando mão dos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso de linha francesa. Para esta,
As condições de produção do discurso irão determinar não o sentido
em si, mas as posições ideológicas do jogo discursivo. Podemos
considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as
circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as
considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem
o contexto sócio-histórico, ideológico. (ORLANDI, 2000, p. 46).
O recorte proposto para este trabalho pretende analisar até que ponto a
publicidade assume o papel de instrumento de dominação, visto que, segundo
Munanga (1996, p. 80) “[...] os preconceitos raciais são considerados como atitudes
2
Essa semiotização do real pela imagem, em que cada um se projeta no que aparece como um reflexo de seu
ambiente, é constitutiva do sujeito. (BELISLE apud CHARAUDEAU, 2006. p. 112).
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sociais propagadas pela classe dominante, visando à divisão dos membros da
classe dominada, para legitimar a exploração e garantir a dominação.”
É indispensável verificar, na associação dos elementos audiovisuais, a
presença do elemento ideológico, já que, para se constituir sujeito, o indivíduo é
interpelado pela história e pela ideologia (ORLANDI, 2003, p. 46). Essa interpelação
acontece quando o indivíduo sofre interferências da história no sentido de se
inscrever em um discurso já existente. E essa inscrição não é aleatória, pois há um
processo de identificação do sujeito com o discurso predominante. Desse modo,
cabem alguns questionamentos: a) Há manipulação do sujeito-telespectador a
desvalorizar a raça negra? b) Até que ponto a ideologia do embraquecimento pode
estar materializada no discurso dessa propaganda? A fim de responder a essas
questões, serão considerados princípios teóricos do funcionamento discursivo na
mídia televisiva, articulados aos conceitos de racismo e embraquecimento.
Considera-se racismo como a manifestação do preconceito e da
discriminação que permeiam as relações de raças em uma sociedade (MUNANGA,
1996, p. 76). O preconceito revela-se no dia-a-dia, nas situações mais simples, em
uma sociedade na qual as pessoas desenvolvem um mundo simbólico em que as
características fenotípicas acabam operando como referências para esse
preconceito. À proporção que a mídia enaltece as características fenotípicas de uma
raça em detrimento da outra, colabora para o enfraquecimento da segunda. Em
outras palavras, há uma introjeção da idéia da superioridade racial, o que colabora
para a sedimentação do embranquecimento, que vem a ser a negação da negritude
(FERREIRA, 2000, p. 70).
1 ANÁLISE DO TEXTO PUBLICITÁRIO
No tópico anterior, foram considerados princípios teóricos sobre o
funcionamento discursivo na mídia televisiva, articulando com os do discurso racista;
priorizou-se estabelecer relações existentes entre história
3
, memória
4
e condições de
produção na produção de sentidos relativos ao discurso racista. A seguir, por meio
dos dispositivos teóricos disponíveis, analisa-se a propaganda da cerveja Sol,
veiculada no verão de 2007 e intitulada Bronzeador. Pela análise a ser apresentada,
busca-se demonstrar quais mecanismos e estratégias foram utilizados nessa
materialidade midiática que possibilitaram a produção de determinados sentidos em
detrimento de outros. Pretende-se, em síntese, esboçar o que, o como e o porquê a
propaganda parece dizer o que diz. Inicia-se, então, a análise do texto publicitário,
apresentando o jingle
5
que acompanha a exibição do vídeo:
(P1): Tava no escritório com um baita de um calor...
(CM): Sol!
3
A produção de acontecimentos que significam. (ORLANDI, 2003, p. 31)
4
O saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está
na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. (ORLANDI, 2003, p.31)
5
Canção especialmente composta e criada para a propaganda de determinada marca. Forma de música
geralmente simples e cativante, fácil de cantarolar e recordar. (RABAÇA e BARBOSA, 1998, p. 134)
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(CM): Vamo aí, que’o verão já começou!
(P1): Mas verão sem mulherada, não é verão, é um terror!
(CM): Sol!
(CM): Vamo aí, que’o verão já começou!
(P1): Agora, o lance é achar o vendedor...
(P2): Ó a Sol, nem forte, nem fraca, no ponto!
(CM): Vamo aí, que o verão já começou!
(P3): Peraí! Quem vai passar o bronzeador?
(CM): Eeeeeeu!
(P4): E o verão tá bombando. Vamo aí?
(VM): Beba com moderação.
A enunciação é realizada por quatro personagens distintas (P1, P2, P3,
P4), um grupo de personagens masculinas que compõem um coro (CM: coro
masculino) e um enunciador masculino não identificado (VM: voz masculina). Para o
desenvolvimento da análise, subdividiu-se o vídeo, exibido em 30 segundos, em 3
partes, constituídas de 32 cenas: a primeira parte, formada pela seqüência de cenas
1 a 5, corresponde ao espaço de uma metrópole; a segunda, pela seqüência de 6 a
12, equivale ao espaço da estrada; a terceira, pela seqüência de cenas 13 a 32, ao
espaço da praia. Esse jingle apresenta-se em cadência acelerada, jovial. A fim de
considerar apenas o indispensável à discussão deste trabalho, a análise da
propaganda encerra-se na cena da terceira parte em que a personagem masculina
negra (P2) surge como enunciador, recebendo destaque no texto fílmico. De
maneira enxuta, tornou-se possível demonstrar como os principais elementos verbo-
visuais se articulam com os sonoros
6
, produzindo efeitos de sentido singulares na
propaganda, bem como a seqüência narrativa que dela faz parte. Note-se a
seqüência:
Na parte 1, um homem jovem (P1), aparentando ter faixa etária entre 18 a 25 anos
aproximadamente, de fenótipo branco, vestido com camisa de manga comprida branca e gravata
amarela, encontra-se em um ambiente de cor acinzentada. Além da ambientalização e do seu traje
indicarem que se trata de um local de trabalho, no jingle, P1 canta “Tava no escritório” e folga a
gravata. P1 sugere ao sujeito-telespectador que o ambiente está quente. Apesar do traje social, a
gravata amarela e o cabelo desalinhado de P1 são indícios da irreverência dessa personagem.
Na seqüência, P1, ainda folgando a gravata, aparece enquadrado pela câmera na janela
do escritório. Como a janela está aberta, o sujeito-telespectador pode deduzir que naquele ambiente
faz muito calor.
P1 confirma tal efeito de sentido, pois canta “... com um baita de um
calor!”. O vocábulo “baita” sugere fuga da variedade lingüística padrão, o que
contribui para a produção do sentido de informalidade de P1 e, por conseguinte, do
próprio produto. Assim, a cerveja Sol é um produto que deve ser consumindo
independente da circunstância ou do consumidor.
P1 destaca-se pelo contraste das cores branca e amarela com o seu
ambiente de trabalho de cores escuras e frias. Uma breve análise semiótica permite
perceber que estas cores simbolizam o líquido, sendo este personificado na figura
6
O conjunto de sons quer sejam eles verbais (falados ou cantados) ou não, ruídos ou oriundos de instrumentos
musicais.
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de P1, pela sua irreverência ao burlar as normas de um sistema. Enquanto o branco
representa a espuma da cerveja, o amarelo corresponde ao conteúdo.
Em seguida, a câmera aproxima-se da janela do escritório, focando o
trânsito e destacando quatro caminhões amarelos com a palavra “Sol”, escrita em
vermelho, nas laterais. Os caminhões circulam em diversos sentidos e direções,
embaixo e em cima de um viaduto. O recurso de enquadrar, em fração de segundos,
tantos caminhões em um espaço limitado pela janela, possibilita mostrar o intenso
consumo da cerveja, e, especificamente, daquela marca, naquele período e pode
representar um convite a P1 refrescar-se. Ouve-se um coro masculino (CM) falar
forte e rapidamente “Sol!”.
Ainda no escritório (enunciado por P1 na cena 1), há uma predominância
de figuras masculinas, de fenótipo branco. Todas as pessoas estão vestidas
formalmente, uma delas gira a cadeira e quase todas as outras jogam os papéis
para cima. O CM, no jingle, convida: “Vamo aí, que o verão já começou!”. A
predominância de personagens masculinas e o coro, igualmente másculo, compõe
uma conjugação dinâmica que produz o sentido de que o convite, em 1ª pessoa do
plural “Vamo” (variação lingüística, português não padrão), dirige-se não só aos seus
pares, supostamente homens, jovens, de fenótipo branco, que trabalham em
escritórios, independentes financeiramente, mas também a todos os que se
identificarem com a proposta da marca. Vale ressaltar que não aparece qualquer
personagem de fenótipo negro. A observação dessa ausência é fundamental para a
análise proposta por esse trabalho.
Na seqüência, surgem vários “homens de escritório”, abrindo bruscamente
portas largas de madeira e saindo velozmente, alguns escorregando pelo corrimão
que divide a larga escadaria. Devido a tais elementos e à seqüência da narrativa,
que mostrava o escritório no alto de um prédio, o sujeito-telespectador pode deduzir
que se trata da saída do prédio em que fica o escritório. O recurso da associação do
CM - que completa a frase da cena anterior, “...que o verão já começou!” – com a
saída brusca das personagens aciona a idéia de viver intensamente o dia, ou carpe
diem.
Na segunda parte, exibe-se o interior de um carro esportivo de luxo, onde
se encontram 4 homens. Tal elemento visual pode reforçar a idéia da independência
financeira masculina. Assim como o automóvel dirigido, um Eco Sport, P1 conota
integração com a natureza e também propõe o carpe diem. Ao lado de P1, está um
homem jovem de fenótipo branco, atrás de P1, mais outro de fenótipo branco e,
atrás do banco do carona, um de fenótipo negro. Mas a sombra da prancha de surf,
que está sobre o veículo, esconde a personagem negra, vista com dificuldade pelo
telespectador. Essa personagem parece não ter nenhuma função, buscando ocupar
um espaço que efetivamente permanece vazio, numa clara tentativa de apenas
cumprir a lei 3198/00
7
que determina um percentual de 20% de negros em
programas televisivos.
7
Projeto de lei do Deputado Federal Paulo Paim (PT-RS).
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A câmera, que se encontra no interior do carro, aproxima-se e, quando dá
um close na face direita do motorista P1, focaliza, ao fundo, um ônibus que buzina.
Podem-se ver pessoas acenando dentro do ônibus azul. P1 continua a cantar,
completando a frase iniciada na cena anterior: “... não é verão, é um terror!”. O
conjunto dos elementos áudio-visuais que compõem o quadro cênico aciona a
memória do sujeito-telespectador, que deduz o desenrolar da narrativa, ou seja, o
sujeito antecipa que há mulheres no ônibus.
Na seqüência, lê-se apenas “olley Fe” na lateral do ônibus. Entre as duas
“palavras”, há o desenho de uma estrela. Dentro desse ônibus, há várias mulheres,
de fenótipo branco, amontoando-se nas janelas, olhando para a direção da câmera.
Como a câmera, na cena anterior, estava no interior do carro esportivo, é possível,
ao sujeito-telespectador, atribuir o sentido de que as mulheres estão olhando para
os homens do carro, ou, pelo menos, para os dois, de fenótipo branco, que estão na
lateral próxima ao ônibus. Ouve-se o CM: “Sol!”. A associação dos elementos áudio-
visuais pode levar o sujeito-telespectador a produzir o sentido da satisfação
masculina diante de tantas mulheres acenando. E como, na cena anterior, a buzina
partiu do ônibus onde estão as mulheres, sugere-se o sentido da lascívia feminina.
Em seguida, P1 e o passageiro que está na lateral direita do veículo, com
as janelas abertas, olham para o ônibus. O CM canta: “Vamo aí...”. Agora,
relacionando o jingle aos elementos visuais, o sujeito-telespectador pode atribuir ao
vocábulo “vamo” o sentido de anúncio de visita às mulheres, já que o vocábulo “aí”
parece referir-se a essas mulheres.
Surgem duas mulheres loiras: uma, que aparece no lado esquerdo do
vídeo, olha em direção à câmera e acena com um gesto de chamamento, abrindo e
fechando as mãos; a outra, do lado direito, segura uma lata de cerveja Sol. Ambas
estão vestidas em traje de banho, mais especificamente de biquíni. Diante dos
elementos visuais que compõem a cena, o sujeito-telespectador deduz o convite
feminino ao prazer carnal e, cristalizando o sentido de lascívia feminina. O CM
continua: “... que o verão...”.
Logo em seguida, a câmera se distancia e pode-se ler “Volley feminino” na
lateral do ônibus. E o CM conclui: “... já começou!”. Fecha-se também o círculo da
representação: finalmente, o sujeito-telespectador atribui sentido ao fragmento de
texto “olley Fe” da cena 8. A presença de estrangeirismo no vocábulo “volley” e a
grafia, em português, do vocábulo “feminino” são elementos da linguagem verbal
que, associados, podem dar sentido à nacionalidade das mulheres e ao status que
elas querem demonstrar. O sujeito telespectador pode atribuir o sentido de que são
brasileiras - pela grafia da segunda palavra – e que tentam demonstrar sofisticação
pelo uso da primeira palavra, escrita em inglês, língua falada pelo Primeiro Mundo.
Na terceira parte, ao fundo da cena, vê-se o ônibus estacionado ao lado
do carro esportivo. A praia aparece na parte inferior do vídeo. P1 abraça duas
mulheres loiras. Há outra personagem masculina também abraçada a uma mulher
loira. Ouve-se P1: “Agora, o lance...”.
Aparecem sombreiros amarelos da cerveja Sol, areia, mar, pessoas de
fenótipo branco. P1 continua: “...é achar o...”. A associação dos elementos áudio-
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visuais que constituem o quadro cênico cria condições do sujeito-telespectador
produzir o sentido de expectativa pela procura de algo (ou alguém) indefinido.
Em seguida, a câmera dá um close no rosto de P1, que aparece entre o
rosto de duas mulheres loiras. Então P1 completa o a frase: “... o vendedor.”. Após
esse instante da cena, a música para de tocar. A procura pelo vendedor e a
ausência de som produzem o suspense, a expectativa como efeito de sentido. Em
seguida, e ainda sem música, a câmara destaca um homem de fenótipo negro,
caminhando na areia, por entre os sombreiros amarelos, carregando uma caixa de
isopor pendurada ao pescoço, levantando uma lata de cerveja e anunciando em tom
pausado, quase cantado: “Ó a Sol! Nem forte, nem fraca, no ponto!”. Considerando
o contexto imediato da propaganda, a associação dos elementos áudio-visuais
permite que o espectador entenda que se trata do vendedor. O tom dado à cena
produz efeito de espetáculo, pois prende e seduz o sujeito-telespectador, ao lhe
mostrar o mundo exterior:
Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a
atividade social efetiva: esse desdobramento também é desdobrado.
[...] A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa
alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente.
(DEBORD apud GREGOLIN, 2003, p. 9)
A propaganda simula a realidade quando mostra a personagem,
representação do vendedor ambulante de cervejas, carregada de características
próprias dos reais vendedores, constituintes do objeto representado. A produção de
sentidos pode não se encerrar por aí, uma vez que, a depender do interdiscurso do
sujeito-telespectador e, considerando o contexto histórico da construção da
identidade afro-descendente, podem ser produzidos, pelo menos, dois sentidos
diferentes: a cristalização da imagem do negro como serviçal, subempregado,
marginalizado; ou a indignação por perceber a tentativa de manutenção da idéia de
inferiorização racial do negro sugerida pela propaganda.
Imerso numa sociedade que tem no preconceito racial um dos pilares de
sua construção sócio-histórica, o negro precisa lutar cotidianamente para tentar
desconstruir as imagens criadas em torno da sua etnicidade:
[...] a identidade da pessoa negra traz do passado a negação da
tradição africana, a condição de escravo e o estigma de ser objeto de
uso como instrumento de trabalho. [...] A cor da pele e as
características fenotípicas acabam operando como referências que
associam de forma inseparável raça e condição social, o que leva o
negro à introjeção de um julgamento de inferioridade [...] (SOUZA
apud FERREIRA, 2000, p. 41-42)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O negro, tanto no contexto imediato (o vídeo publicitário da cerveja Sol),
quanto no histórico-factual, difundido durante aproximadamente 400 anos pelos
europeus e seus descendentes, permanece subjugado a um discurso de
superioridade racial branca. Esta é munida de variadas formas de negação da
negritude, utilizando o espaço midiático como meio de propagar uma ideologia
baseada em pressupostos racistas.
A análise da propaganda demonstra como a mídia aproveita-se do poder
de seduzir os telespectadores, visto emocioná-los através da associação de
elementos sonoros e imagéticos, para reforçar o discurso racial já cristalizado sobre
os negros. A associação das falas e das imagens na produção do discurso
publicitário converge para o estabelecimento de uma suposta verdade, colocada
como inquestionável. Em O Bronzeador, a figura do negro é evidenciada através da
manutenção de estereótipos que lhe atribuem características, tais como: negro
servil, sofredor, incapaz de ocupar determinadas posições e papéis sociais, etc.b
Podemos verificar, na edição da peça publicitária em questão, que sequer
a cota mínima obrigatória prevista em lei federal foi preenchida, evidenciando que
não é apenas através da coersão que se conseguirá mudar o panorama nacional
previamente destinado à população negra, mas também investindo-se em
programas que busquem sensibilizar a sociedade de modo a despertar para a
necessidade da não reprodução do discurso ideológico vigente, buscando a
desconstrução de estereótipos que insistem criar, disseminar e perpetuar a idéia da
inferioridade negra.
É preciso quebrar o espelho que distorce a imagem que o negro tem de si
próprio, a fim de, igualmente, quebrar o processo cíclico onde a vida imita a arte que
imita a vida.
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REFERÊNCIAS
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Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.
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FERREIRA, Ricardo F. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de
Janeiro: Pallas, 2000.
GREGOLIN, M. do R. (Org.). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.
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