30 setembro 2008

PSICÓLOGO GARI


PSICÓLOGO GARI

A moral e os costumes que dão cor à vida, têm muito maior importânciado que as leis, que são apenas umas das suas manifestações.A lei toca-nos por certos pontos, mas os costumes cercam-nos por todosos lados, e enchem a sociedade com o ar que respiramos.'· Toda ação repetida gera hábito.· O hábito muda o caráter.· O caráter muda a existência.· 'Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível'Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da'invisibilidade pública'. Ele comprovou que, em geral, as pessoasenxergam apenas a função social do outro. Quem não está bemposicionado sob esse critério, vira mera sombra social.O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhouoito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali,constatou que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são'seres invisíveis, sem nome'. Em sua tese de mestrado, pela USP,conseguiu comprovar a existência da 'invisibilidade pública', ou seja,uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisãosocial do trabalho, onde enxerga-se somente a função e não a pessoa.Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o saláriode R$ 400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maiorlição de sua vida:'Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, podesignificar um sopro de vida, um sinal da própria existência', explicao pesquisador.O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e nãocomo um ser humano. 'Professores que me abraçavam nos corredores daUSP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Àsvezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas,seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em umorelhão',diz. Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e dashumilhações diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem osenxerga. E encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.Diário - Como é que você teve essa idéia?Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, oprofessor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma dasprovas de avaliação, que a gente se engajasse numa tarefa proletária.Uma forma de atividade profissional que não exigisse qualificaçãotécnica nem acadêmica. Então, basicamente, profissões das classespobres.Com que objetivo?A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição detrabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão inseridos nacena pública. Ou seja, estudar a condição moral e psicológica a qualeles estão sujeitos dentro da sociedade. Outro nível de investigação,que vai ser priorizado agora no doutorado, é analisar e verificar asbarreiras e as aberturas que se operam no encontro do psicólogo socialcom os garis. Que barreiras são essas, que aberturas são essas, e comose dá a aproximação?Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de umestudante fazendo pesquisa?Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal.Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como novofuncionário, recém-contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas osgaris sacaram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisatípica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos emgeral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o diferencial,porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série defatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos,o modo de a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira comogesticulamos. Os garis conseguem definir essa diferenças com algumasfrases que são implesmente formidáveis.Dê um exemplo.Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear comum dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos deidade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha decouro na mão. O sujeito passou pela gente e não nos cumprimentou, oque é comum nessas situações. O gari, sem se referir claramente aohomem que acabara de passar, virou-se pra mim e começou a falar: 'ÉFernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o cabra é dodinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho. Já opessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E quando agente está esperando o trem logo percebe também: o peão fica todoencolhidinho olhando pra baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cimade toda a peãozada, segurando a pastinha na mão'.Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era diferente?Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro diade trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era umgari. Fui tratado de uma forma completamente diferente. Os garis sãocarregados na caçamba da caminhonete junto com as ferramentas. É comose eles fossem ferramentas também. Eles não deixaram eu viajar nacaçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de insistir muito parapoder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de trabalho,continuaram me tratando diferente. As vassouras eram todas muitovelhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim. Não medeixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Elesfizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmoassim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão deque os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem socioeconômicadeles.Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.Eles testaram você?No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram umagarrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinhacaneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujeito vindo deoutra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo,alguns se aproximavam para ensinar o serviço. Um deles foi até o latãode lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as latinhas pelametade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a genteestava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eununca apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveriatomá-lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirouas latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira,tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei acaneca improvisada, parece que todo mundo parou para assistir à cena,como se perguntasse: 'E aí, o jovem rico vai se sujeitar a beber nessacaneca?' E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou.Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aíeu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei peloandar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei nabiblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico,passei em frente a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiztodo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensaçãomuito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, umaangustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivessesido sugado. Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para otrabalho atordoado.E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também asituações pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor seaproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele iapassar por mim, podia trocar uma idéia, mas o pessoal passava como setivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.E quando você volta para casa, para seu mundo real?Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que vocêestá inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais.Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doençaburguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles,freqüento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo decumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber queeu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animaldoméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossemuma 'COISA'.Plinio Delphino-Diário de São Paulo