27 fevereiro 2007

UM OLHAR DE BRANCO SOBRE AÇÕES AFIRMATIVAS



Este artigo tem uma componente pessoal muito forte. Foi essa história pessoal que me levou a me colocar e me mover a favor de ações afirmativas no Brasil e do estabelecimento de cotas para negros nas Universidades Públicas, Privadas, no Crédito Educativo, no Serviço Público e na concessão de pontos para empresas com maior número de empregados negros.

Tudo começou com um período que passei na Inglaterra, de março de 1999 a fevereiro de 2001. Lá o negro é majoritariamente o paquistanês e o indiano. A componente africana da população é bem menor (infelizmente não tenho dados estatísticos para corroborar essa impressão, mas deve ser fácil obtê-los). Havia na BBC (tv estatal inglesa) uma preocupação evidente em ter dois âncoras nos jornais, sempre um deles era negro e mulher (a combinação era homem branco/mulher negra, homem negro/mulher branca). Nos programas de debates, também se expressava a diversidade étnica, colocando entrevistadores negros, mesmo quando o programa tinha só um entrevistador. Numa das novelas, havia um diretor de escola negro que vivia um romance com uma professora loira. O que é notável é o fato do negro estar em posição proeminente dentro hierarquia escolar. Isto reflete o fato da Inglaterra conviver bem com a diversidade étnica? Não. Havia cerca de um assassinato por preconceito por mês, noticiado na mídia inglesa. Soube de um assassinato por racismo a 200 m de minha casa. O que há é uma consciência social da importância de valorizar a diversidade cultural e de enfrentar o racismo de frente. Não é como no Brasil, como lembra o saudoso Florestan Fernandes, onde “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito” (in “Ação Afirmativa e Democracia Racial”, de Sandro César Sell, Fundação Boiteux, 2002). Lá, a questão étnica é assumida. Lá, há bonecas negras. É fácil achar uma no Brasil, que tem 45% de negros (5% de pretos e 40% de pardos segundo o PNAD/IBGE de 1999)?

De volta ao Brasil, um país aparentemente sem racismo, me deparei com comerciais alegres do Guaraná Antarctica. Só havia brancos, servindo e bebendo. No comercial seguinte, do mesmo produto, aparecem negros, mas só servindo e brancos só consumindo. No comercial da cerveja Schincariol, a música é “moro num país tropical” de Jorge Benjor, um negro, mas a maioria esmagadora das pessoas é branca. Será que isto reflete o lugar reservado ao negro no Brasil? Nos telejornais da noite, cadê os negros como âncoras? As mulheres já começam a aparecer, mas a barreira contra negros parece intransponível. No entanto, de um ano para cá, verifica-se um aumento do número de repórteres negros nos telejornais.

Certamente, antes de ir para a Inglaterra, não me sentiria incomodado com o que relatei no parágrafo acima. Meu olhar era de branco, educado numa sociedade com racismo cordial, com minha percepção contaminada por essa forma sutil de racismo. Pouco depois de voltar ao Brasil (fevereiro/2001), deu-se a Conferência da ONU contra o racismo em Durban (setembro/2001), África do Sul, à qual a delegação brasileira levou propostas avançadas para lidar com os efeitos do racismo no Brasil, entre elas a de criação de cotas para negros entrarem nas Universidades públicas.

Sem dúvida, a Conferência de Durban colocou a questão do racismo e como combatê-lo na ordem do dia. Um dos resultados visíveis foi a aprovação de cotas de 40% para negros nas Universidades Estaduais do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ (Univ. Est. Do Rio de Janeiro)e a UENF (Univ. Est. Do Norte Fluminense), em 09 de outubro de 2001.

Nessa mesma onda, foi votado recentemente no Senado Federal substitutivo do senador Sebastião Rocha ao projeto de lei do senador José Sarney estabelecendo cotas para negros em Universidades, Serviço Público e até em licitações promovidas pelo Poder Público. Este projeto deve ir a votação na Câmara e juntado ao projeto do deputado Paulo Paim que estabelece cotas para negros em novelas, filmes e publicidade.

Mas por que parece tão necessário forçar a integração do negro na divisão do bolo da sociedade brasileira? Não parece que o Brasil é uma democracia racial?

Dados do PNAD/IBGE (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio/de 1992 a 1999) indicam que o salário médio do negro é metade do salário do branco. O analfabetismo caiu menos para o negro do que para o branco. Um ano a mais de escolaridade faz branco ganhar mais do que o negro (ver Folha de São Paulo de 05/04/2001). Estamos diante de um “apartheid” social disfarçado.

O movimento dos negros pelo fim da segregação racial nos EUA, nas décadas de 1950 e 1960, popularizarou um conceito jurídico original: o da ação afirmativa ou discriminação positiva. Aparentemente, este modo de reparar injustiças sociais é bastante disseminado no mundo, mas nos limites deste artigo vou tratar, parcialmente, do caso estadunidense.

A idéia de discriminar positivamente vem do fato que a propalada igualdade formal não se reflete na sociedade real (para uma discussão detalhada sobre a questão jurídica envolvida nesta idéia, consultar “Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade”, de Joaquim B. Barbosa Gomes, Ed. Renovar, 2001). É como afirmar que um empresário rico tem a mesma influência que um operário numa eleição, já que ambos têm um voto. Ora, o empresário tem muito mais dinheiro para financiar seu candidato que o operário e hoje, nos EUA, as campanhas eleitorais para presidente se medem em bilhões de dólares. Voltando à questão étnica, nos EUA da década de 1950 não havia igualdade com relação à distribuição da renda e da escolaridade. Para dar um exemplo, entre 1960 e 1995, o percentual de negros formados em Universidades e escolas profissionais pulou de 5,4% para 15,5% do total. Em cursos como Medicina, o aumento passou de 700%. O percentual de negros em cargos executivos em empresas, que era praticamente zero em 1960, passou a 8% em 1995 (Folha de São Paulo, 25/08/2001). Esta mudança foi efeito das políticas de ação afirmativa implementadas pelos EUA, entre elas: cotas ou atribuição de pontos a mais para negros nas avaliações para entrada em Universidades, reserva de mercado de trabalho para negros e pontos a mais para empresas com empregados negros em licitações públicas, entre outras. Portanto, ações afirmativas resultam em maior igualdade ao menos no campo educacional e isso pode ser avaliado objetivamente.

Uma crítica muito difundida no ideário progressista é que realmente os negros são desfavorecidos, mas são desfavorecidos por serem POBRES e não por serem NEGROS. Assim, uma política de elevação da qualidade da saúde e educação pública básica irá permitir que entrem na Universidade e nela permaneçam, ao contrário de uma política de cotas, que seria demagógica ao permitir que os negros entrassem, mas devido a toda uma conjunção de fatores, não se formassem.

Creio que essa crítica teórica, uma vez que não é possível confrontá-la com fatos, já que não há cotas para negros nas Universidades, pode, no entanto, ser contraposta em duas frentes: a concepção de democracia racial subjacente a ela e uma pesquisa recente elaborada pela Fundação Oswaldo Cruz em conjunto com a Prefeitura do Rio de Janeiro (Folha de São Paulo, 26/05/2002). Nesta pesquisa fica claro que negro em hospitais públicos e particulares do Rio de Janeiro (e provavelmente em todo o Brasil) é discriminado desde antes de nascer. As gestantes negras têm menos cuidados médicos do que as brancas. Isso significa receber menos anestesia no parto normal, receber menos explicação sobre o aleitamento materno, cuidados com o recém-nascido, sinais do parto, pré-natal, alimentação adequada, entre outras coisas. Nas palavras da pesquisadora Silvana Granado: “Primeiro achamos que estávamos comparando pessoas de classes sociais e de níveis de escolaridade diferentes. Mas, quando percebemos que a diferença se mantinha, ficamos chocados”. Pode-se concluir desta pesquisa que serviços universalizados continuam sob a égide do racismo cordial. Portanto, não se pode supor que vivemos numa democracia racial. Os negros e negras são diuturnamente discriminados e, portanto, torna-se necessário compensar esta discriminação negativa com uma outra de caráter positivo. O tratamento universalista não dá importância à questão étnica. E não combater o racismo cordial é compactuar com ele.

Atualmente, na sociedade brasileira, têm-se a percepção de que o negro só pode ascender socialmente através do esporte e da arte. Portanto, os modelos para os negros provavelmente vêm desses dois tipos de atividades. Pesquisas mostram em alguns casos que “quando, numa população o número de modelos sociais e econômicos (pessoas que sejam pelo menos de “classe média”) chega a uma proporção muito baixa (algo em torno de 5%), a violência, o consumo de drogas, o abandono escolar e a gravidez na adolescência crescem explosivamente” (Sell, op.cit., há outras pesquisas no mesmo sentido comentadas nesta obra). Portanto, privar os negros brasileiros da esperança de conquistar um lugar ao sol também tende a mantê-los na situação marginal em que se encontram.

Considero imperioso que os brancos brasileiros percebam que o problema dos negros enquanto discriminação racial e social não é somente problema deles. É um aspecto da injustiça reinante no Brasil. Assim como é o da fome e da pobreza em geral. Portanto, requer posicionamento e ações efetivas de brancos e negras, no sentido de ser enfrentado e solucionado.

Ações afirmativas não vão resolver o problema do racismo cordial brasileiro, mas no mínimo vão chamar a atenção dos brasileiros para ele e provavelmente minorá-lo. Somente uma melhora sensível nos níveis de emprego, na distribuição de renda e nas políticas sociais poderá contribuir de forma permanente para a melhoria do padrão de vida dos brasileiros, particularmente os negros.

Este artigo abordou apenas alguns aspectos dos problemas relacionados ao racismo no Brasil e às políticas de ação afirmativa e de cotas. Obviamente, o problema é muito mais complexo, mas pelo menos está sendo enfrentado de forma mais clara nos últimos tempos em nosso país.


MARCELO HENRIQUE ROMANO TRAGTENBERG
Doutor e professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)