19 agosto 2009

O DUELO GLOBO-RECORD




O DUELO GLOBO-RECORD,
A OUTRA FACE


"A discussão é a forma polida do instinto batalhador
que jaz no homem, como herança bestial; os querubins
e serafins não controvertem nada, porque são a
perfeição espiritual e eterna."

Machado de Assis, O Espelho


Para a maioria do povo brasileiro, que assiste televisão de maneira despreocupada e tranquila, procurando companhia e diversão, parece deslocada a atual campanha, orquestrada pela Rede Globo, contra os aparentes desmandos da Igreja Universal do Reino de Deus. Tal feito procura atingir a seita e seu dirigente máximo, o denominado "Bispo Macedo", mas, no fundo, mascara interesses poderosíssimos de guerra comercial que envolveriam o recente crescimento da Rede Record de televisão, incontestável braço midiático da Igreja ora denunciada e atingida.

A virulência dos argumentos, surgidos de repente e repetidos em
suíte pela rede de televisão mais importante em matéria de audiência, no
país, demonstraria um anseio bissexto e muito pouco usual na emissora de
retorno à moralidade – num momento em que o panorama reflete os conflitos em
torno da ética, que hoje, inclusive, ameaçam por descrédito a própria
sobrevivência dos três poderes nacionais.

Sendo assim, muito já se escreveu sobre o tema, tentando se
descobrir as verdadeiras motivações que estão por trás de tantas iniciativas
de cunho "moralizador": ora se diz que seria uma guerra estratégica,
provocada pelo temor da Rede Globo em perder a liderança de audiência,
principalmente aos domingos; ora que seria tentativa, meio canhestra e
requentada, de ressuscitar argumentos contra o dirigente máximo da Igreja e
seu grupo mais íntimo de colaboradores.

Edir Macedo seria diretamente acusado de mercantilista e
traficante de simonias e dízimos isentos de impostos, que seriam depois
transferidos, num processo de lavagem de dinheiro e segundo a Rede Globo,
através de empresas de fachada, para a inquietante expansão da atual Rede
Record de televisão.
Também alguns outros atentos analistas afirmaram que tal campanha,
de natureza extemporânea, poderia servir a uma decisão secreta entre a Rede
Globo e o governo para desviar a atenção do povo sobre a podridão terrível
que emana dos subterrâneos do Congresso.

Seja qual for a interpretação do enredo dessa estória – que pode
conter, sem dúvida alguma, todos esses condimentos – o embate parece
contentar a todos. À Rede Globo, cujo planejamento estratégico interno já
detetou que, do jeito que a coisa vai, no mercado de emissoras de TV em
pleno regime democrático, a Rede Record irá alcançar a coirmã em menos de
cinco anos. Tal fato seria terrível para uma emissora que, engordada e
cevada durante o regime de ditadura militar, parece não conviver bem com
outras televisões organizadas em regime de livre concorrência.

Por seu turno, a luta beneficia indiretamente à própria Rede
Record, porque essa movimentação seria a prova cabal de que estaria
incomodando muito a líder, Rede Globo. Esta contou, desde há muito tempo,
com verdadeiras estratégias imperiais num mercado francamente monopolista,
em que seria a estação mais eficiente na defesa do regime dos militares,
enquanto a Rede Record, através do proprietário oculto da Igreja Universal
do Reino de Deus, representaria a ascensão de um instrumento tecnológico,
informacional e midiático de um novo império de fervor religioso, baseado na
famosa teoria ou teologia da prosperidade.

Tal teologia seria o reconhecimento tácito do supremo poder do
capitalismo em terras brasileiras. "Creia em Deus e no Senhor Jesus e
prosperarás, comprando imóveis, carros novos, pagando as dívidas,
livrando-se de aluguéis, restaurando a família, livrando-se de incômodos
vícios e expandindo negócios". Embora esses princípios não estejam escritos
na Bíblia, em lugar nenhum, qualquer argumento que possa convencer os fiéis
de que Jesus está operando no sentido de prodigalizar fortunas é acolhido
pelo Bispo e suas empresas semissecretas. Daí a razão de seu sucesso, capaz
de atrair multidões de adeptos e expandir-lhe o empreendimento "religioso"
por mais de 80 países! Só é esquecido o Sermão da Montanha, onde Cristo diz
textualmente: "não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mt., 6:24).

Por sua vez, a Rede Globo autointitula-se, hipocritamente, uma
instituição laica, quando todos sabem que sempre preferiu incentivar o
catolicismo entre os brasileiros, promovendo os seus eventos e liturgia. A
Igreja Católica, porém, ciosa do papel político e com certa circunspecção,
não vem se metendo no duelo entre as televisões, mas bem que gostaria que a
Igreja Universal não angariasse tantos adeptos, através dos métodos
agressivos de comércio da fé, nem crescesse tanto, como efetivamente anda
crescendo...

Diz-se, também, que o poder Judiciário já julgou as pendências ora
denunciadas e pretensa e novamente investigadas pelo Ministério Público.
Afirma-se, ainda, que as denúncias já foram repelidas pelo Supremo Tribunal
Federal e o povo assiste a tudo, impassível, porque não quer e nem pode
interferir nessa verdadeira "briga de cachorros grandes".

E quão grandes são os dois grupos, representados na ponta visível
do iceberg e simbolizados pelas duas redes de televisão? Aliás, o Brasil
repete as estratégias de guerra de monopólio e oligopólio que já existiram
no início do século passado e resultaram num grande bem para o povo
norte-americano: a criação da lei antitruste, que passou a impedir que uma
só empresa ou pequeno grupo de empresas tentasse se utilizar do próprio
poder para dominar setores estratégicos da economia, nos Estados Unidos. E
estamos falando de petróleo, minérios, gás, carvão, água, transportes, lixo
e saneamento.

A luta antitruste, empreendida nos Estados Unidos no início do
século XX, conflito típico de sociedades de segunda onda, não informatizadas
se repete no Brasil, como disse Karl Marx, em forma de farsa, no século XXI
quando aparentemente teríamos leis e instituições antitruste em pleno
funcionamento, mas que nada representam, diante da majestade do poder de
conglomerados industriais e bancários que funcionam em nosso país. Sabemos
muito bem que o brasileiro não tem força alguma, como cidadão, contra o
enorme poder dessas empresas, que têm força incomensurável e representantes
e lobistas no governo e no Congresso.

Assim, a pretensa briga Globo-Record, além de "não dar em nada"
como quase tudo em nosso país, serve como mais uma cortina de fumaça contra
a corrupção dentro dos poderes e põe em segundo plano completo a CPI da
Petrobrás, completamente escondida do telespectador comum. Este prefere
muito mais saber se o Faustão continuará por mais 20 anos a falar as
besteiras e obscenidades de sempre durante os domingos, sendo campeão de
audiência da Rede Globo e um superinfluente formador de opinião pública e da
"inteligência" nacional, Ou se, ao converso, Gugu Liberato, pela Rede Record
com aquela carinha suave de bom moço rico, irá desbancar a atmosfera de
monopólio aos domingos, beneficiando com muitos dividendos e lucros a
televisão do Bispo Macedo.

Interessa mais ao público saber se a programação bonitinha e
robotizada da Rede Globo, à qual os brasileiros se acostumaram sem contestar
será ultrapassada pela concepção artística da Rede Record, muito mais
criativa e humanista, capaz por isso mesmo de convencer as classes menos
favorecidas e exigentes a assistir a um novo modelo de TV, que vem surgindo
no horizonte de um país em que praticamente não acontece nada de novo.

Escapar do monopólio da Rede Globo que sempre nos massacrou, desde
os tempos da ditadura militar, seria, pois, iniciativa muito bem-vinda,
talvez até heróica. No entanto, poderíamos ficar à mercê da raça ilustre dos
telepastores, que também compram horários caros e ocupam espaços em outras
redes e emissoras. Essa classe, muito exigente e sofisticada de pedintes,
conseguiria, habitualmente, extrair dízimos e ofertas dos crentes e fiéis
que, se somados todos, acabariam por empobrecer e levar à falência a
população como um todo, ilaquiando os incautos e engordando os bolsos cheios
dos que se autodenominam mensageiros da fé!

Pouco importa de fato para o cidadão comum a luta entre tais
"cachorros grandes", porque ele sabe, no fundo, que não existem no Brasil
autoridades policiais, procuradores ou juízes capazes de contrabalançar o
poder dessas grandes empresas. Elas possuem capacidade quase inesgotável de
convencimento pela corrupção, poder de levantar, baixar e instalar recursos
e na contratação de grandes, caros e competentes escritórios de advocacia.
Aliás, o pagamento de honorários de advogados caros e ricos é a única
distribuição de renda permitida pelos milionários brasileiros. Estes, além
de garantir que os processos sejam remetidos para a eternidade (o que não
deixa de ser um "milagre" quase religioso) permitirão que logo esse duelo
entre televisões seja substituído por outros escândalos, mais sensacionais e
recentes.

E só restaria ao cidadão comum, esquecido e oprimido, como sempre
oferecer a outra face.

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* Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e já está cansado de
apanhar nas duas faces, como qualquer brasileiro.
Teresópolis, 17 de agosto de 2009.

 

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