02 julho 2006

01/07: Somos Dionísio




GUSTVO ALMEIDA (JB ONLINE)

A cidade ficou triste, é fato. Mas acredito que a pouca tristeza que há pelas ruas é mais pela festa que não aconteceu, pela cerveja não bebida, pelos beijos não dados, do que por esta seleção tão sem identificação com o povo brasileiro, tão pouco representativa em seu modo de ser, de agir, de ver a vida. A festa seria bonita - mas não foi porque a Justiça foi feita pelos pés de um gênio que não treme na hora de decidir, o tal Zidane. Que se dane a Pátria - é o que parece me dizer o Roberto Carlos, amarrando as chuteiras na hora do golaço de Thierry Henry, gol este que selou a partida de vez - era nítido que o Brasil não conseguiria o empate. Zidane mandou no jogo.
Por mais que as lágrimas existam, há coisas que foram derrotadas junto com esta seleção pelas quais a gente nunca torceu. Certas concepções e estereótipos são estranhos ao brasileiro, daí a total capacidade de a gente se adaptar à idéia de "ganhar jogando feio".
Uma idéia que era propagada pelo técnico Carlos Alberto Parreira o tempo todo, como se fosse a única alternativa, a de ganhar jogando mal. Ora, como assim? Por que vincular um conceito ao outro?
A briga destes modos de ver a vida tem a ver com as questões do Apolínio/Dionisíaco - e aqui não estamos dando uma de intelectual de botequim. O brasileiro tem sangue quente, o trópico nos alucina. Não queremos a vida certinha e regular. Amamos o mata-mata, o drama, a tragédia com apogeu e fim, a lágrima e a emoção da vitória ou da derrota - daí a nossa resistência aos pontos corridos, mesmo diante do argumento de que "premiam o time mais regular". Ora, de "regular" já basta a nossa rotina: acordar, pegar um ônibus, ir ao trabalho, levar bronca do patrão, almoçar no restaurante a quilo, tomar café, ir embora, pegar engarrafamento e de 12 em 12 meses pleitear férias que serão parecidas com as do ano passado.
Esta é a vida ordinária - na acepção pura da palavra, no sentido de ordem, de monotonia. Quando buscamos o esporte, o futebol, a paixão, é só para satisfazer nosso desejo do imponderável, do imprevisível. Somos Dionísio, Baco, fervemos no vinho e no sangue. Não queremos levar para um campo de futebol ou a tabela do campeonato a monotonia do ônibus no engarrafamento ou do salário no dia 5. Como me disse certa vez o Marcelo Yuka, ex- Rappa: "O drible às vezes vale mais que um gol", referindo-se a Júlio César, ponta-esquerda do Flamengo nos anos 80.
Parreira disseminava a repulsa ao risco de jogar bonito, de jogar dionísio. E representava esta maneira de ver a vida. Tanto é que jogamos feio e agora não temos nada - ora, foram cinco jogos péssimos. Tirando, claro, parte do jogo contra o Japão, não houve mais nada que valesse a pena. Valeu a pena ouvir tantas vezes o discurso de que jogar bonito não basta para entrar para a história, é preciso ser campeão? Pois bem, jogamos feio e fizemos história. Mas com h minúsculo.
E se Ronaldinho Gaúcho tivesse feito firulas, Ronaldo Fenômeno marcasse diversos gols, Robinho pedalasse mas MESMO ASSIM o Brasil ficasse fora?
A diferença é esta: as lágrimas seriam, sem dúvida, muito maiores. Porque amamos o risco, tudo aquilo que nos faz esquecer da vida normal, sem cheiro nem sabor. Apolo é para os bretões, alemães, talvez suecos - opa, italianos, franceses e portugueses estão fora disso. Estas semifinais serão sintomáticas quanto a isso: se verá grande sofrimento nos respectivos países que forem eliminados - já se a empolgadíssima Alemanha perder, o máximo que se ouvirá serão alguns PQPs em germânico e olhe lá. Nenhum deles se comparando às nossas tragédias, ao nosso 1982, ao nosso 1986 - ao nosso 1950. Sempre que perdemos, desviamos um pouco o curso de nossa história - e é isto o que talvez mais nos faça brasileiros. E também o que mais faz desta seleção estrangeira - sua derrota não alterará nem a macarronada de domingo do brasileiro.
Acabou a Copa do oba-oba, do cantar vitória, da "geração que superaria a de Pelé" e de tantas outras firulas que inventaram. Acabou a Copa em que, de 10 comerciais na TV, 7 tinham jogadores da Seleção Brasileira. Acabou a Copa em que se tentou proibir a crítica (algo quase tão secular quanto a prostituição) de dizer que quem estava mal estava mal. Não havia ninguém mal, havia apenas "recordistas". Acabou a Copa da Legião Estrangeira, da Seleção dos tempos modernos - a seleção que não tem o Júnior do Flamengo, o Roberto Dinamite do Vasco, o Rivellino do Fluminense, o Sócrates do Corinthians, o Careca do São Paulo. Aquela seleção com a qual esbarrávamos na esquina da Domingos Ferreira com a Siqueira Campos. Hoje, pessoal, a vida é outra - somos torcedores-visitantes, não estamos mais tão em casa. Dizer que "a Seleção Brasileira vai voltar para casa" pode apenas significar que os caras vão pegar um trem. Não é patrulhamento "financeiro", já que houve seleções de jogadores ricos e que nem por isso deixavam de ter raça. Mas apenas uma constatação: nossas lágrimas precisam ser mais caras, pelo menos a metade do preço dos nossos jogadores. Somos Dionísio, bebemos vinho, queremos dar nosso sangue, mas estamos longe demais de Frankfurt. É pena.

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