30 junho 2006

TELEVISÃO



Rafael Gomes (JB online)

Termino de assistir à segunda temporada de Lost, série de televisão que virou sensação planetária. Como muitos outros antes dele, e prova da dominação que o meio televisivo, em termos de alcance, ainda impõe sobre os demais, o seriado extravasou as simples esferas do programa de tv e tornou-se fenômeno pop, assunto de conversas e parte irremovível da vida das pessoas.

Comparar fatos do cotidiano com as agruras dos sobreviventes fictícios ou mesmo relacionar características psicológicas e comportamentais de amigos e conhecidos a de determinado personagem lostiano virou coisa comum. Eu faço e aposto que você - espectador assíduo que fica com medo de levantar da frente da tv para ir ao banheiro cada vez que um episódio termina com aquele som e aquele suspense característicos e aflitivos – também faz.

Em edição recente, a revista norte-americana Entertainment Weekly, bíblia do showbizz, vaticinou, alegando o crescente interesse do público e a qualidade dos programas exibidos: TV Is King!.

Em edição de domingo passado de um jornal de grande circulação no Brasil, Silvio de Abreu, autor da telenovela Belíssima, disse com todas as letras e assertividade que a televisão, para nós, era muito mais importante do que o cinema.

Discussões (complexas) à parte, fato é que Lost possui seus defeitos, mas mesmo eles são tão bem embalados para consumo que passam a ser não só palatáveis como também parte indissociável de um todo bastante coeso. A dramaturgia é esquemática, mas espertamente pensada para funcionar como folhetim. As viradas são bem programadas, o suspense é equilibrado. Apesar de formulaico, o desenvolvimento das histórias pequenas e grandes quase sempre faz você não agüentar de ansiedade de ver o próximo capítulo.

Os personagens são arquétipos, claro. Mas são defendidos por um elenco surpreendentemente homogêneo e cativante. Levante a mão quem não adora a crueldade de Sawyer, a ambigüidade de Kate ou os mistérios de Locke.

Com suas escorregadas melodramáticas aqui e ali, o grande trunfo de Lost, enfim, é a curiosidade. Trata-se o tempo inteiro do desconhecido, de acontecimentos fantásticos e de muitos mistérios. E, desde sempre, quando se lida de maneira competente com o insondável, cria-se uma isca saborosa, difícil de não ser mordida pelo público.



Mas toda essa introdução é para dizer algo que pode parecer sem propósito, mas que intriga. É assombroso o quanto Lost, em seu microcosmo fictício, emula dinâmicas sociais e comportamentais tão distantes e tão próximas do universo que aborda. Ilhados estamos todos nós.

Não se custa muito a perceber que, naquela ilha perdida, a grande dificuldade é a comunicação. As pessoas não se falam o suficiente, não se entendem o suficiente, não são generosas o suficiente. Na luta pela sobrevivência, e na luta pelo poder dentro da sociedade ali formada, alguns egos transbordam, outros retraem-se e os seres convivem enfrentando-se, em vez de simplesmente ajudarem-se.

O olhar, o gesto e a atitude lançados ao outro, e aos Outros, para ser específico na trama do seriado, é sempre de desafio. O perigo está sempre suposto, ou simplesmente projetado, sem necessariamente existir. Dessa forma, o medo é uma fabricação puramente subjetiva.

(Lost sabe que ronda essas questões e as cutuca bem, até, para um programa de aventura.)

Agora pense na pessoa que vem lhe pedir para limpar seu vidro do carro no semáforo. Você a está enfrentando ou convivendo com ela? Ela te dá medo por quê, ó cara pálida? O PCC está te enfrentando ou tentando te entender? E você? Está tentando entender o PCC? Ou simplesmente o está condenando à morte, sem julgamento?

Que Lost e a realidade social brasileira (falo da brasileira porque moro aqui, conheço aqui, sei como funciona aqui) se assemelhem na brutalidade das relações humanas que apresentam, pautadas pela total falta de diálogo e de busca pelo entendimento, pode ser um pensamento de longo alcance de alguém que quer ver bastante.

Mas vai lá, passe os olhos por todos aqueles 48 episódios produzidos até agora (a primeira temporada está lançada em dvd no Brasil, a segunda está atualmente em exibição pelo canal a cabo AXN) e me diga se não há, nessas linhas, um pouquinho de pertinência.




DICA
Para adensar o pensamento sobre humanos versus humanos, sociabilidade conflituosa, intolerâncias diversas e vidas cerceadas, não deixe de ver Código Desconhecido, sensacional filme de Michael Haneke (diretor atualmente em cartaz com outra maravilha, Caché). Tá ali perto, numa boa locadora de dvd.




PS:
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto, em sabatina recente:

LIBERDADE "Temos que ser livres de fato. E sentar na rua. Já amanheci deitado com um amigo na sarjeta na praça da República e não aconteceu nada. Em qualquer desses bairros privados, teríamos sido metralhados. Em certos bairros, se eu for pra lá, já vão me perguntar o que eu estou fazendo. Se disser que não sei, que fui passear, vou em cana. Isso é um absurdo. A cidade é democrática. A cidade é livre. O que acontece com essa classe temerosa que se autoalimenta do pavor? Dizem: "Não há segurança". Como pode haver segurança para quem tem filhos? Como? Botar um guizo em cada filho? É impossível. É uma idéia tola, a da segurança, e um instrumento da exclusão."

BURGUESIA "Quando o coro canta na escadaria do teatro Municipal, toda aquela área fica em silêncio. A cidade que a burguesia despreza é muito mais educada do que ela imagina. (...) A parte mais educada da população habita todo dia a cidade. Senão 10 milhões de pessoas não conseguiriam todos os dias fazer o que fazem. Vêm, com dificuldade, voltam, consomem e alimentam o mercado. E dão lucro para os que desprezam a cidade."


E aí, ecoou?

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